19/05/2014
Perversidades sempre existiram na humanidade, mas hoje com a
proliferação dos meios de comunicação, algumas ganham relevância e
suscitam especial indignação. O caso mais clamoroso, nos inícios de maio
de 2014, foi o linchamento da inocente Fabiane Maria de Jesus em
Guarujá no litoral paulista. Confundida com uma sequestradora de
crianças para efeito de magia negra, foi literalmente estraçalhada e
linchada por uma turba de indignados.
Tal fato constitui um desafio para a compreensão, pois vivemos em
sociedades ditas civilizadas e dentro delas ocorrem práticas que nos
remetem aos tempos de barbárie, quando ainda não havia contrato social
nem regras coletivas para garantir uma convivência minimamente humana.
Há uma tradição teórica que tentou dilucidar tal fato. Em 1895 Gustave Le Bon escreveu, quiçá por primeiro, um livro sobre a “Psicologia das massas”.
Sua tese é que uma multidão, dominada pelo inconsciente, pode formar
uma “alma coletiva” e passa a praticar atos perversos que, a “alma
individual”, normalmente jamais praticaria. O norte-americano H. L.
Melcken ainda em 1918 escreveu “A Turba” um estudo
judicioso sobre o fato e mostra a identificação do grupo com um lider
violento ou com uma ideologia de exclusão que ganha então um corpo
própro e, sem controle, deixa irromper o bárbaro que que ainda se aninha
no ser humano. Freud em 1921 retomou a questão com o seu “Psicologia das massas e a análise do eu”.
Os impulsos de morte, subsistentes no ser humano, dadas certas
situações coletivas, diz ele, escapam ao controle do superego
(consciência, regras sociais) e aproveitam o espaço liberado para se
manifestar em sua virulência. O indivíduo se sente amparado e animado
pela multidão para dar vazão à violência escondida dentro dele.
A análise mais instigante foi feita pela filósofa Hannah Arendt. Em
1961 acompanhou em Jerusalém todo o processo de julgamento do criminoso
nazista Adolf Eichamann por crimes contra humanidade. Arendt escreveu em
1963 um livro que irritou a muitos:”Eichmann em Jerusalém:um relato sobre a banalização do mal”.
Ela cunhou a expressão “a banalização do mal”. Mostrou como a
identificação com a figura do “Führer” e as ordens dadas de cima podem
levar às piores barbaridades com a consciência mais tranquila do mundo.
Mas não só em Eichmann se expressa a barbárie. Também naqueles judeus
que extravassavam seu ódio a ele, exigindo os piores castigos, como
expressão também de um mal interno.
Que concluimos disso tudo? Que um conceito realista do ser humano deve incluir também sua desumanidade. Somos sapentes e dementes.
Em outras palavras: a barbárie, o crime, o assassinato pertencem ao
âmbito do humano. Demos um dia, há milhares de anos, o salto da
animalidade para a humanidade, do inconsciente para o consciente, do
impulso destrutivo para a civilização. Mas esse salto ainda não se
completou totalmente.
Carregamos dentro de nós, latente mas sempre atuante, o impulso de
morte. A religião, a moral, a educação, o trabalho civilizatório foram
os meios que desenvolvemos para pôr sob controle esses demônios que nos
habitam. Mas essas instâncias não detém aquela força que possa submeter
tais impulsos às regras de uma civilização que procura resolver os
problemas humanos com acordos e não com o recurso da violência.
Cumpre reconhecer que vigora em nós ainda muita barbárie. Não diria
animalidade, pois os animais se regem por impulsos instintivos de
preservação da vida e da espécie. Em nós esses impulsos perduram mas
temos condições de conscientizá-los, canalizá-los para tarefas dignas,
através de sublimações não destrutivas, como Freud e recentemente, o
filósofo René Girard com seu “desejo mimético” positivo tanto
insistiram.
Mas ambos se dão conta do caráter misterioso e desafiante da
persistência desse lado sombrio (pulsão de morte em dialética com a
pulsão de vida) que dramatiza a condição humana e pode levar a fatos
irracionais e criminosos como o linchamento de uma pessoa inocente.
Todos pensamos nos linchadores. Mas quais seriam os sentimentos de
Fabiane Maria de Jesus, sabendo-se inocente e sendo vítima da sanha da
multidão que faz “justiça” com suas próprias mãos? A questão principal
não é o Estado ausente e fraco ou o sentimento de impunidade. Tudo isso
conta. Mas não esclarece o fato da barbaridade. Ela está em nós.
E a toda hora no mundo ela ressurge com expressões inomináveis de
violência, algumas reveladas pela Comissão da Verdade que analisa as
torturas e as abominações praticadas por tranquilos agentes do Estado de
terror, implantado no Brasil.
O ser humano é uma equação ainda não resolvida: cloaca de
perversidade para usar uma expressão de Pascal e ao mesmo tempo
irradiação de bondade de uma Irmã Dulce na Bahia que aliviava os
padecimentos dos mais miseráveis. Ambas realidades cabem dentro desse
ser misterioso – o ser humano – que sem deixar de ser humano ainda pode
ser desumano.
Temos que completar ainda o salto da barbárie para a plena
humanidade. A situação violenta do mundo atual, também contra a Mãe
Terra nos deixa apreensivos sobre a possibilidade de um desfecho feliz
deste salto. Só mesmo um Deus nos poderá humanizar. Ele
tentou mas acabou na cruz. Um dos significados da ressurreição é nos
dar a esperança que ainda é possível. Mas para isso precisamos crer e
esperar.
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