A liturgia do 25o domingo do tempo comum apresenta a temática da Sabedoria Divina relacionada com a prática da Justiça. Gostaria de apresentar uma construção hermenêutica pessoal para este domingo, cujo tema assim quero denominar: "Quem é sábio é justo e quem é justo é obediente ao Pai"
A segunda leitura é tirada de uma carta do final do primeiro século (provavelmente dos anos 80 ou 90) cujo remetente tem o nome de Tiago. Seja quem for o tal Tiago, a liturgia extrai os versos dezesseis a dezoito do terceiro capítulo sequenciado pelos três primeiros versos do quarto capítulo. Nesta pequena perícope, o autor sagrado apresenta que a Sabedoria Divina produz infinidades de frutos como a pacificidade, a bondade, a conciliação, a compaixão, a simplicidade e a sinceridade (v. 17 simples e sem disfarce).. Contudo o verso dezoito apresenta a máxima expressão da Sabedoria, ou seja, a prática da justiça. Isso porque, quem pratica a justiça promove a paz. Não é sem propósito que o autor sagrado elege a justiça como a máxima expressividade da Sabedoria, pois quando percebemos os três primeiros versos do quarto capítulo, notamos logo o contexto deste trecho. A comunidade destinatária desta carta, provavelmente, é um grupo de judeus helênicos ou também um grupo de gentios convertidos ao judaísmo que viviam em constantes conflitos entre si. Assim, o autor sagrado escreve que os problemas dos conflitos internos da comunidade tem solução quando a prática da justiça for efetivada, consequenciando no restabelecimento da paz. Portanto, quem é sábio, garante o autor sacro, é também justo e esta deve instaurar a paz! Porém, como compreender a prática da justiça como restautação da paz?
A primeira leitura é quem nos ajuda a dar essa resposta. Tirada do texto da Sabedoria, texto este escrito em ambiente helênico, mais ou menos nos séculos III a.C, este opúsculo apresenta o confronto entre a Sabedoria Divina com a sabedoria humana. A proposta da liturgia para este domingo são os versos doze, dezessete até o vinte do capítulo dois. O autor sagrado mostra que a construção da paz pela prática da justiça não é tarefa nada fácil e, com frequência, incomoda aos outros (v. 12). O presente texto, portanto, mostra as reações de quem não colabora com a prática da justiça e também as possíveis consequências de quem, assim, pretende ser justo: "Vamos testá-lo com ultraje e tortura; medir até onde vai a sua serenidade e provar sua resistência" (v.19). Contudo, há um detalhe importante nesse texto. Há, no senso comum, uma ideia equívoca que a justiça divina é aquela da condenação eterna. Ou seja, a justiça divina simplesmente seria uma meritocracia escatológica. O texto da sabedoria mostra justamente o contrário, a justiça divina acontece a cada dia na prática daqueles que se deixam guiar por sua sabedoria. A prática da justiça é "opor-se às ações" que não estão de acordo com a ética e com os direitos humanos, pois "repreeende as transgressões da Lei e censura por preterer a educação". De modo geral, a justiça e a paz são construções diárias que exigem a inspiração da Sabedoria Divina e o compromisso com os princípios éticos e os direitos de todos. Ser justo é, parafraseando um jargão teológico, anunciar a Sabedoria Divina e denunciar todas as transgreções do ethos humano. Entretanto, quais são as consequências e as fontes da justiça?
O Evangelho de hoje, extraído da comunidade marqueana em seu capítulo nono, versos trinta a trinta e sete, mostra quais sãos as fontes de uma verdadeira justiça que é fruto da Sabedoria Divina bem como suas consequências radicais. A comunidade de Marcos, como é de costume, apresenta sua representação do Cristo na pessoa transeunte de Jesus. A saída da Galileia para Cafarnaum mostra a transição que o texto quer apresentar. Na Galileia, Jesus apresenta aos seus discípulos as consequências de seu projeto justo, a saber: "O Filho do Homem vai ser entregue às mãos dos homens; eles o matarão em quando tiver sido morto, após três dias, ressuscitará" (v. 31). A comunidade não só apresenta esta perícope como um relato histórico-anaminético, mas o apresenta como a experiência teológica que a comunidade como um todo deve fazer para que se cumpra a justiça divina. Ou seja, todo ato de justiça divina deve ter como fonte a experiência pascal de Jesus. Mas isso por quê? É muito comum a equívoca aproximação ou identificação entre justiça e vingança. Acredita-se que fazer justiça é devolver ao outro aquilo que ele merece ou até pior e pelas mãos daquele que foi vitimizado. Entretanto, esse sentimento mais se parece com os filmes de Hollywood do que com a justiça divina. A proposta da justiça de Jesus é a proposta da fidelidade ao Pai. Jesus se entrega nas mãos dos homens não porque ele é masoquista, mas porque sua fidelidade ao Projeto de Justiça Divina o provoca a ser fiel até o fim, até a morte. A Justiça de Deus deve ser proclamada e denunciada como experiência pascal e não como sentimento de restabelecimento da ordem social ou meramente uma problemática de classes.
Essa experiência pascal da Justiça é proposta no texto na passagem para Cafarnaum quando Jesus desconfia das intenções de seus discípulos. Percebendo que para os discípulos, a experiência pascal não fora entendida, assim como toda comunidade de Marcos e também até nós hoje, o autor sacro apresenta a comparação da criança. A ideia de liderança, por consequência a de justiça, está relacionada com a experiência da fidelidade ao Projeto do Pai, ou seja, a criança é tida como modelo de justiça, não pelo seu aspecto moral de pureza ou inocência, mas pela sua total dependência. Portanto, ser sábio é ser justo na medida em que a prática da justiça tem seus fundamentos e sua consequências na kenosis de Jesus, i. é, na experiência de que aquilo que fazemos e construímos só tem sentido porque queremos que os beneficiados sejam verdadeiramente libertos e não porque tenho um projeto pessoal de libertação. Somos parte integrante do Grande Reino de Deus e toda justiça deve ser expressão desse Reino e não o contrário.
Espero que com essa reflexão, possamos ter uma liturgia mergulhada na profundidade do mistério pascal e assumida na prática da justiça e da paz. Pois ser sábio é ser justo e ser justo é ser obediente ao Pai.
Graça e paz a todos!
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