Em homenagem a D. Robinson Cavalcanti, compartilhamos um texto escrito bem próximo de sua ressurreição...
Robinson
Cavalcanti
+ (In memoriam)
O período do Primeiro Reinado, Regência e início do
Segundo Reinado (“maioridade”) foi bastante conturbado por episódios de
revoltas regionais e étnicas ou de caráter liberal e republicano, em destaque,
no Nordeste, a Insurreição Pernambucana (1817), a Confederação do Equador
(1824) e a Revolução Praieira (1848).
Desde a Colônia que tivemos episódios milenaristas/quiliáticos
no catolicismo popular, cuja raiz está no próprio sebastianismo português (o “retorno
das águas” de Dom Sebastião, morto na batalha de Alcácer-Quibir), com
pretensos messias e instauração de reinos celestiais na terra. Fenômeno que
continuou na República com o Canudos de Antônio Conselheiro, e teve até um
episódio protestante entre luteranos do sul, com os Muckers de Jacobina Maurer.
Naquele tempo os negros, em sua religiosidade,
oscilavam entre a assimilação católica de Irmandades, como a de Nossa Senhora
dos Pretos ou São Benedito, e a preservação dos cultos animistas de fundo
africano. O protestantismo de imigração ou as capelanias britânicas não
ameaçavam o sistema, conquanto o próprio Regente Padre Feijó advogasse para o
Brasil um catolicismo reformado nacional, semelhante ao Anglicanismo. É nesse
contexto que o Recife conheceu um movimento único, que foi o liderado pelo
negro livre Antônio José Pereira, a partir de 1841.
Ele fora alfabetizado pela senhora de sua mãe, uma
escrava doméstica, servira na Milícia (força policial auxiliar), inclusive em
outras Províncias do Império, alcançando a patente de oficial. Sua Bíblia pode
ter sido uma edição católica ou uma edição protestante deixada pelos escassos
colportores das Sociedades Bíblicas estrangeiras que passaram brevemente por
Pernambuco naquela época.
Vale lembrar que um pastor norte-americano havia
distribuído 50 Bíblias em 1823 e um colportor havia deixado um caixote de
Bíblias em 1833. Em 1822, com um batismo realizado pelo Rev. John Penny,
foi criada a capelania anglicana do Recife, que inauguraria o seu templo da Rua
da Aurora em 1839. Antônio, ao estudá-la, havia sublinhado todas as passagens
que falavam da intervenção libertadora de Deus em favor dos oprimidos, e as
relacionava com a situação da raça negra, que considerava, no contexto do
Brasil, moralmente superior a dos brancos, maculada pela prática da escravidão.
Pregou a dignidade da raça negra, o livre exame da
Bíblia por todos os fiéis, inclusive pelas mulheres, que alfabetizou, e que
constituíam a maioria dos seus cerca de 300 seguidores (mais um número, não
preciso, de simpatizantes).
Antônio, que era tratado por sua comunidade como “Divino
Mestre” se considerava um cristão ortodoxo em relação às doutrinas credais,
mais denunciava a Igreja Romana, como desviada e o padroado (status de religião
oficial tendo o Imperador como Grão-Chanceler da Ordem de Cristo), e atacava a
veneração das imagens, centrando a fé em Jesus Cristo.
O historiador Marcus Carvalho (CFCH-UFPE), um dos poucos
a pesquisar o tema, o considerava um “pastor negro”, e via, em seu
movimento, as marcas do Protestantismo. A dimensão milenarista ficava por conta
da crença que a esposa do “Divino Metre” se mantinha grávida por quatro
anos, e que o fruto desse ventre teria uma identidade sagrada, e, quando do seu
nascimento, instauraria um reino messiânico.
O sistema imperial, tenso com as revoltas
regionais, novos quilombos (como o de Catucá), movimentos milenaristas, a
celebração a Independência do Haiti, e a memória da “Revolta dos Malês”
(negros muçulmanos), na Bahia, hierárquica, patriarcal e escravista, temia e
reprimia qualquer movimento autônomo na sociedade civil, especialmente vindo
dos negros, e negros que sabiam ler, e de mulheres, que, fossem negras ou brancas
não tinham status de cidadania.
Tudo isso se constituía em uma potencial ameaça
para a ordem estabelecida. O que não tardou na prisão, em 1846, de Antônio José
Pereira, e seis dos seus seguidores. Dada a importância que atribuíam ao
potencial de revolta ou abolicionista da seita, os detidos não foram ouvidos
pelo juiz de paz, ou pelo juiz de direito, mas, diretamente pela segunda
instância formada pelos Desembargadores do Tribunal de Relação da
Província de Pernambuco.
O advogado do “Divino Mestre”, o liberal
radical e emancipacionista Borges da Fonseca, editor de um temido jornal local,
que defendeu a sua libertação baseado em que sendo um movimento pacífico, que,
ao pregar o que consideravam ser “o verdadeiro cristianismo”, ou “a
lei de Jesus”, poderia ser apenas acusado de “cismático”, mas que
cisma não era crime pelas leis do império, haja vista a presença dos imigrantes
e das capelanias inglesas.
Os líderes da seita “protestante negra”
foram mantidos presos por cerca de um ano, voltando, depois, a se reunir e a
pregar em praça pública, onde a população pobre, inclusive negra (católica ou
do candomblé), instigada pelas autoridades, os atacava verbal e fisicamente. Em
1851 correu na cidade a notícia de que um dos seguidores havia morrido e
ressuscitado, causando uma polvorosa, e levando as autoridades a decretar a
exibição pública de todos os cadáveres antes dos enterros…
Com a consolidação do Segundo Reinado, o sistema se
consolidou e se sentiu menos ameaçado, amenizando a repressão, enquanto ia
crescendo o movimento abolicionista. Escasseiam os registros sobre a seita,
sobre a morte de Antônio José, o que aconteceu com a “gravidez de quatro
anos”, e porque ela veio a se dissolver e desaparecer.
Como o pensamento “anglicano” do Padre
Feijó, e o posterior nacionalismo republicano e abolicionista dos irmãos
maranhenses Vieira Ferreira, que criam a primeira denominação pentecostal
(antes que houvesse pentecostalismo no mundo) entre nós, a Igreja Evangélica
Brasileira, a seita negra pernambucana constitui parte desse
proto-protestantismo (no caso popular) brasileiro, amplamente desconhecido, e
que tem muitas similitudes com o cristianismo nativista africano atual, com
seus milhões de seguidores, também amplamente desconhecido no Ocidente, com
exceção do Kimbanguismo que se filiou ao Conselho Mundial de Igrejas.
Uma grande lição: deixar pobres e negros lendo a
Bíblia por conta própria e sublinhando textos libertadores… é sempre um perigo…
Fonte: www.pavblog.com
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